Criança tem gênero?

Um breve desenvolvimento sobre a sexualidade infantil e a identificação com papéis sexuais.

iasmin flor
3 min readMar 20, 2024

Acho particularmente curioso como as crianças tem noções sobre sexualidade. Noções e curiosidades, algumas exclusivas, outras mais generalistas. Além de impulsos. Uma criança exposta à uma “cena” sexual não sabe exatamente o que está vendo, mas sente partes da cena. A sexualidade é envolvida em muitas camadas de afeto. E por mais que a humanidade mascare todas essas camadas, promovendo um recalque coletivo, preferindo endossar uma camada única — denominada “amor”, o que uma criança vê/sente sobre qualquer atitude sexual são muitas coisas e, me arrisco a dizer, amor não está incluso na lista. Inúmeros os casos em que a principal camada afetiva percebida pela criança é o “terror”. Situação traumática. Crianças não devem, de maneira alguma, ser expostas a situações sexuais ou -ao meu ver- a aprofundamentos sobre noções envelopadas por adultos sobre a sexualidade. A sexualidade infantil é criativa, auto erótica — experimentativa em si mesma. Uma jornada infantil, que não precisa da interferência do adulto, a menos que essa criança seja exposta erroneamente a uma cena. Esta sexualidade é ordenada pelo princípio do prazer, a criança segue se descobrindo e percebendo o mundo com a boca, a pele, os ouvidos, olhos e todos os recursos disponíveis. A criança quer gozar de estar viva.

Mas quando digo que as crianças tem noções sobre sexualidade, quero me referir à situação de serem expostas de alguma forma ao ato sexual ou aprofundamentos sobre sexualidade. Seja por meio de qualquer um dos sentidos. Uma criança que ouve uma cena, imagina. Uma criança exposta a uma cena, é irreversível. Uma amiga psicanalista esses dias disse “quando você vê algo, é impossível desver”. Ela quis dizer no sentido simbólico, mas eu estou aqui trazendo o sentido real. É impossível ser (des)exposto a uma cena. Você viu. Você foi introduzido a um mundo o qual não tem recursos para simbolizar. Quais os recursos que tem uma criança para simbolizar algo do qual nem mesmo nós, adultos, somos capazes ainda de entender? O lúdico na vida da criança tem papel fundamental, ele chega para sanar as possíveis angústias e apaziguar os furos deixados pelas adultices que cruzam com seu caminho. Uma criança não sabe simbolizar certas coisas. Ela precisa do lúdico para explicar, de onde vem os bebês, o que é a morte, porque sua mãe precisa sair de casa para trabalhar. Sejamos honestos, é impossível dizer que uma identidade de “gênero” seja exclusivamente “gênero”, tendo em vista a origem desse fenômeno cultural. Neste assunto, nós adultos, não podemos nos permitir ser inocentes. Quando falamos de gênero, estamos falando de identidades sexuais. A diferença é sexual. Os papéis impostos rigorosamente pela sociedade, são impostos aos sexos. E quem eu sou está automaticamente vinculado a com quem eu me relaciono. Mamãe? Papai? Irmão, irmã? Por que crianças devem ser levadas a pensar suas identidades sexuais ou como se posicionar no mercado dos afetos, antes mesmo da puberdade? Por que crianças estão, tão tão cedo, formando uma noção de identidade, de imagem de si mesmos — algo que indiscutivelmente trará, por meio deste mecanismo, reações no Outro? Amor, abandono, punições, mídia, lutas políticas, etc.

O gênero de uma criança, não é só sobre a criança.

É sobre a relação da criança com o Outro.

E neste momento, você leitor pode dizer “mas não só o da criança, o gênero de todos nós é sobre a nossa relação com o Outro”. Sim, concordo. Elaboramos nossas noções de gênero indiscutivelmente atravessadas pela nossa relação com o Outro e com os nossos objetos de desejo… mas fazemos isso não sem dor. Não sem uma bela dose de sofrimento. Especialmente nós, neuróticos. É preciso haver espaço para a dúvida. Para elaborar a “conta afetiva” do que se ganha e o que se perde se expressando da forma que se deseja. Como se faz essa conta sendo uma criança que acabou de aprender a elaborar coisas tão basilares sobre a vida? Como se permite a uma criança o espaço da dúvida, quando já se encerrou a questão, “transicionando-a de gênero” ou até mesmo afirmando-a no gênero condizente com o seu sexo? Não estaríamos nós, desta forma, reproduzindo a própria neurose de gênero e criando novas neuroses?

Esse texto é um apelo para que pensemos a infância de modo menos adulto e deixemos que as crianças desenvolvam suas próprias formas de apreender a vida.

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